05/07/2005

Isso Não é Um Ensaio


- O despertar é sempre um pouco frustrante. Sair de um mundo de possibilidades infinitas, do conforto dos sonhos, para esse mundo de muros e grades. É isso que me incomoda, muito mais do que ter de começar o dia. Tudo o que se perde ao despertar.

- Então você queria dormir para sempre, é isso que está dizendo? – Ela disse, dando uma tragada antes de devolver o cigarro para o amigo.

- Não. Não dormindo, sonhando. – ele disse, parecendo sério. Ela ria, ou melhor, sorria, daquela maneira felina de sorrir sem dentes que ela sempre teve.

- E o que lhe garante que não está sonhando agora? Ou talvez o sonho seja meu?

- Não, meus sonhos são mais complexos.

- E se for um sonho dentro de um sonho? Toda a sua vida por estar dentro dos poucos minutos de um sonho e quando você achar que está morrendo, vai acordar. E então, o que seria?

Ele ficou quieto por alguns instantes. Terminou o cigarro e apagou a bituca na sarjeta. Ela quase podia ver as engrenagens de seus pensamentos girando por trás dos olhos azuis. Sorriu ao pensar assim, tomou mais um gole do gim-tônica e deixou-se perder no céu estrelado. Ela sempre gostou das noites geladas e secas, quando as estrelas parecem azuis e afiadas, pequenos cristais colados no céu. Morar em uma cidade onde não pudesse ver as estrelas como via quando era uma criancinha era quase impensável para ela.

O rapaz continuava quieto, pensativo. Ela não podia ver, mas ele agora a observava. Adorava a maneira como ela se perdia em pensamentos em questão de segundos. Ensaiou uma aproximação, mas não teve coragem. Voltou a olhar para baixo, os cachos do cabelo castanho-claro lhe obscurecendo o rosto. Não podia notar, então, que agora ela que sorria para ele. Ela nunca vai entender por que gosta tanto dele, ou o que vê de tão especial no rapaz, mas isso não importa. O que importa é o que ela pensa em fazer sobre isso, sobre o que ela sente. Certas coisas sempre foram muito claras para ela.

- Acho que se fosse tudo um sonho faria sentido. É como naqueles sonhos em que não temos escolhas, mas aqui conseguimos pensar sobre elas. Continua sendo pior... – ele falou para baixo, como se a sujeira da calçada se interessasse por seu discurso.

Levantou os olhos quando notou os fios ruivos deslizando em cascata à sua frente. Ela estava agachada, desequilibrou um pouco por causa do gim e deu uma risada baixinha. Por algum motivo o que o fazia sorrir eram as sardas no nariz dela.

- Errado, - ela disse, levantando o queixo dele com o indicador – se tudo for um sonho, então não faz diferença o que fizermos, ou porque fizemos, desde que seja a nossa verdadeira vontade. Se for delírio, então podemos seguir nossos sonhos sem medo. Que diferença faria?

Tudo nela era sempre tão único e tão coerente. É claro que alguém com aqueles olhos acreditaria em sonhos. E aquela risada solta e gostosa só poderia ser de alguém que um dia tentou fugir com o circo. Ele segurou a mão dela no ar, um pouco surpreso por ainda ter esse tipo de reflexo a essa hora da noite, e ousou sorrir (ele sabia o quanto ela gostava de vê-lo sorrindo, mas quase nunca sentia vontade. Só quando ela estava por perto). Ela aproveitou a deixa e se aproximou do ouvido dele, falando baixinho:

- Você está vivo. Isso não é um ensaio.




Ana Letícia Lopes

3 comentários:

  1. Anônimo11:02 PM

    Belo.

    E me fez relacionar com algumas poucas passagens e situações da minha vida.

    Estou escrevendo um texto relacionado à imagens, imagens mentais e sonhos. Tudo isso tem uma certa relação com a fotografia e a linguagem visual.

    Vou postar no blog depois. É uma primeira reflexão sobre a imagem.

    bjo

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  2. Anônimo7:56 PM

    Engraçado... O texto não me lembrou nenhuma passagem da minha vida! Porque as pessoas sempre acham os textos belos e que lembram partes de sua vida. Eu gostei, mas não faz parte da minha vida. Enfim. Considerando que você é parecida com a guira e a guria é o Sonho em si, affe, tu é o sonho em si, queridinha! ^^

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  3. Anônimo1:12 AM

    Engrenages e Muros & Grades??? heheheh parece que estavas ouvindo Engenheiros do Hawaii ao escrever...

    Na verdade uma questão levantada é interessante, e pode ser algo parecido com o que eu tava pensando essa semana toda... algo do tipo QUE ADORMEÇA A REALIDADE, O SONHO É MAIS REAL (Sim, pe daquela música do Caminhos de Si)???

    Não creio, cheguei a conclusão que os sonhos são as ilusões do que temos pra fazer e não temos coragem de fazer, acho que neles temos escolhas, na vida, talvez não!

    "...Da luta não me retiro, me atiro do alto e que me atirem no peito, da luta não me retiro..." (Fernando Anitelli)

    Adorei o texto!!

    :@@@@@@@@@@

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