29/03/2005

Meio lúgrube...


Uma Noite Como Essas


Ando sem rumo pela noite, deixo o vento úmido embaraçar meus cabelos soltos. Sentada no degrau de uma casa, vinho barato e cigarros amortecem meus sentidos. Quase não noto que tenho companhia. Ele me pede um cigarro. Dou um sorriso bêbado para o rapaz e lhe entrego um marlboro. Depois de um pouco de álcool sempre surge algum tipo de simpatia por desconhecidos.

Ele, sentado ao meu lado, me olha atentamente e demora alguns segundos mais que o esperado para pedir fogo. Segundos silenciosos, com um olhar interessado. Considero uma cantada. Em outra ocasião eu até gostaria. Um rapaz bonito, até (ou pelo menos me aprece através do véu alcoólico pelo qual o vejo). Mas hoje, não. Hoje não sinto vontade nem de falar. Desvio o olhar para os paralelepípedos, a luz de um néon refletindo na umidade deles. Rosa depois azul, depois rosa de novo.

Somos todos iguais, mas alguns tão mais iguais, e outros tão solitários. Como as pedras do calçamento, todos cercados de semelhantes que são extremamente diferentes. Tanta gente na rua, tantos conhecidos, mas não há companhia no mundo que tire esse gosto de solidão da boca numa noite de outono. Não sei o que está acontecendo comigo.

Eu não sei mais de que lado estou. Quando ando na rua, não consigo mais decidir se vou pela direita ou pela esquerda. Quem vai saber que decisão vai ser a que vai mudar a minha vida? Não me sinto mais qualificada para diferir o que é certo do que é errado. O mundo está me atropelando, estou ficando para trás. Indecisa. E esse clima de tempestade parece combinar comigo. Me sinto idiota, estrangeira, confusa. Gostaria de acordar e estar em outro lugar. Gostaria de descobrir que isso tudo é um sonho e torná-lo lúcido.

Pegaria em armas se houvesse motivo.

Rezaria se soubesse para quem.

Enquanto isso, tento me esquecer quem sou. Ou lembrar quem eu era, e como cheguei aqui. Se houve mesmo um antes, quando as coisas não eram assim, ou se eu estava apenas delirando. Acaba meu vinho ao mesmo tempo que a chuva retorna, de leve. Tomo como um sinal divino e saio para mais uma caminhada. Rua deserta, chuva fina, um poste fica piscando oscilante. Minha caminhada também oscila.

Um dia, alguém famoso disse que é melhor queimar rápido do que apagar lentamente. Gostaria de ter luz o bastante para queimar. Acho que sou o tipo de pessoa que nasceu para gastar sua vida lenta e dolorosamente, numa sucessão de escolhas erradas sem nenhum combustível para continuar. Mas de que vale se preocupar? Hoje posso estar questionando, mas amanhã tudo volta ao normal. Eu volto para meu emprego ridículo de meio-período, sigo a minha vida, o mundo continua girando. Continuaria mesmo que eu não existisse. Mais uma entre tantas, não fui feita para ser diferente. Não sou esse tipo de pessoa. Então porque eu me sinto assim? Que razão eu tenho de sentir que, contra todas as provas, há algo escondido no mundo. Alguma coisa não-dita. Seria mais fácil evanecer em vida como tantos fazem. Mais fácil ainda nunca ter conhecido a faísca que acende essa chama.

Faísca. Chama. Tento acender outro cigarro mas o vento o carrega para a sarjeta. Dou um grunhido sarcástico e meio conformado. Não é como se azar me pegasse de surpresa. Me deixo desabar na calçada, cabeça para trás, a chuva gelada quase amortecendo meus lábios. Um rastro de luar dá as caras por trás das nuvens. Alguém se senta ao meu lado. Não olho, não quero companhia. Uma mão me oferece um cigarro. Aceito, com um sorriso forçado.

- Dia ruim? – diz o desconhecido. O mesmo de antes.

Não quero assunto. Depois de alguns minutos de silêncio ele deveria notar, mas insiste.

- Eu também passei uma temporada que parecia ser feita de dias ruins. Um depois do outro. Como naquele ditado, sabe, “sempre existe amanhã”? E amanhã era sempre pior. Mas aí me aconteceu uma coisa...

- Eu não estou interessada em Jesus. – respondo, seca. Eu levantaria se conseguisse, mas sinto como se não fosse mais capaz. Vinho barato.

- Não é nada disso. Odeio essas coisas também. O que me aconteceu foi outra coisa... – ele toma um tom mais confidente, conspiratório.

- Como se eu me importasse... – falo, baixinho, meio resignada.

- ... Eu morri.

Com duas palavras ele prendeu a minha atenção. Um louco. Era o que eu precisava mesmo.

- Isso é um convite? – falo, sarcástica.

- É.

Poucas vezes frases de uma só sílaba têm um peso tão grande. Eu sentiria um frio na espinha se já não estivesse tão gelada. Ou amortecida.

- Então é isso? Tu vai me matar? – Digo sem ânimo ou interesse.

- Se tu quiser.

- E se eu não quiser? – Olho nos olhos cinzentos, opacos. Nada de louco nesses olhos. Apenas a velha e conhecida melancolia.

- Eu vou embora. E procuro outro pra me fazer companhia.

Eu paro. Dou um pega no cigarro. E me pergunto como ele pode estar falando comigo se disse que morreu.

- Tudo bem. – digo. Afinal, que diferença faria? Antes uma morte do que uma morte em vida.

E tomo a mão que ele me estende, pálida e ossuda.

Antes do amanhecer estou morta. E tudo continua igual. Mas agora não estou mais sozinha.






quarta-feira, 23 de março de 2005
Letícia Lopes

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5 comentários:

  1. Anônimo3:01 AM

    Como eu já tinha lido... e estou lendo de novo... Tenho mais familiaridade com o conto! Achei interessante... Como um bom conto brasileiro, introspectivo...

    hm... Só continuo dizendo que caiu no mesmo lugar onde tem caído os contos... na eterna morte e solidão sem fim... :P Como criarmos algo novo?

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  2. Anônimo12:22 PM

    1º e depois eu que sou grunge
    2º Achei mt bom o conto mesmo. Acho que parece comigo em alguns pontos e talz. Eu escrevi algo parecido do meu flog, mas o problema é que tem limite de caracteres entaum nao da p/ desenvolver mt como disses :p
    Mas gostei mt do seu
    :@@@@@@@@@@@@@@@@~
    Bjz

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  3. Anônimo12:05 AM

    nossa...curti mt...tem o q eu sempre espero de um bom conto e q é dificil, um final surpreendente...mas o mais importante(na minha opinião), tu consegui prender minha atenção, fiquei realmente curioso...emfim...mt bom!
    =]

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  4. Anônimo1:02 PM

    Oi maninha! ;)

    Tá mandando muuito bem hein? :) Só tem uma coisa: mas q deprê!!! hehehe Fale sobre coisas alegres tb!!! :P

    Adorei o blog, parabéns!

    Bjocas, adoro vc!

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  5. Anônimo9:45 PM

    Guria!!! Muito bom esse conto!!
    Sério.. matou a pau!!!
    Parabéns!!!
    Abração!

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